sábado, 15 de fevereiro de 2020

Reflexão sobre a reificação

"Penso, logo existo". A celebre afirmação filosófica de Descartes guarda em si um risco inerente se aplicada em sua totalidade extremada de modo que o pensar venha a suprimir o sentir. A capacidade intelectual é um dos atributos centrais (se não o principal) que qualifica e diferencia a humanidade dos animais e demais seres vivos. A problematização ocorre quando o pensar se radicaliza, excluindo a capacidade afetiva e o próprio sujeito.

O excesso de racionalização já era considerado um perigo para humanidade há tempos, ressaltado por Weber no início do século XX. Com a eclosão das grandes guerras mundiais que assolaram o mundo, a pergunta que ficou era como o ser humano foi capaz de perder o seu caráter natural (perdeu a própria humanidade) ao cometer atrocidades à dignidade alheia e à vida do próximo. Uma das hipóteses levantadas foi a radicalização racional em detrimento do sentimento. 

Assim sendo, para tentar entender os fatores sociais e psíquicos que levam, por exemplo, a genocídios, é possível traçar um paralelo-comparativo entre a reificação de Lukács, a racionalização de Weber e a análise da Escola de Frankfurt. Antes de mais nada se faz necessário uma breve explanação sobre o conceito-título deste post. Reificação é sinônimo de coisificação, ou seja, transformar algo e/ou alguém em coisa, perdendo assim as características constitutivas para uma simples concepção instrumental. 

Povos etiquetados dos seres humanos

Partindo de uma análise marxista, pode-se falar em uma consequência do sistema capitalista cuja troca impessoal de mercadorias e fixação na objetivação leva o ser a perder o seu valor subjetivo e cede espaço para a homogeneização, podendo, inclusive, atingir um comportamento de neutralidade orientado pelo fetichismo e/ou alienação. Tal argumentação é coerente ao constatar que o objetivo do capital é o lucro, construindo relações não pessoais que, como consequência, geram indiferença, individualismo e egoísmo. Entretanto, aqui se coloca uma questão: como explicar a reificação com base apenas na lógica e na práxis do capitalismo se antes mesmo da existência deste já havia escravidão nos tempos distantes das civilizações antigas?

É nesse ponto em que a visão de Honneth ganha força para compor o entendimento sobre o assunto. O mesmo vê o reconhecimento como precedente ao próprio conhecimento. Ele usa o exemplo da psicologia do desenvolvimento em seu livro Reificação para exemplificar o caso da criança que primeiro reconhece o outro e, somente em um estágio posterior, passa a adquirir conhecimento.  Portanto, para este autor, a reificação seria como um esquecimento do reconhecimento, seja por convicções ideológicas, seja por desvios patológicos. Desse modo, a reificação pode ser entendida como a perda da participação e do engajamento. A dualidade permite também o entendimento como a utilização (coisificação) do outro como objeto (coisa) para atender determinado objetivo (escravidão).

O entendimento de reconhecimento pode ser expandido para além da questão social (entre pessoas), mas também para outros seres vivos, objetos (valor afetivo) e até consigo mesmo. Portanto, não seria exagero falar em uma autorreificação que atinge três âmbitos, segundo Honneth: (a) intersubjetivo; (b) objetivo; (c) subjetivo. Portanto, a reificação seria o esquecimento do reconhecimento que gera uma cegueira no indivíduo, apagando as qualidades sentimentais. Aliando o conceito a Weber é possível resumir como o afirmado anteriormente: exacerbação da racionalização e esquecimento dos atributos sentimentais. Associaria até o esquecimento do reconhecimento à falta de empatia.

A sociedade do espetáculo e a coisificação do homem

Lukács utiliza-se de uma excessiva generalização em sua análise sobre a reificação, influenciado sobretudo pela ênfase econômica marxista, concebendo a coisificação devido às trocas de mercadorias na dinâmica social do capital, sufocando assim a subjetividade inerente à natureza humana. Como exemplo é possível apontar os crimes de guerra e violações dos direitos humanos pelo nacionalismo extremado. Portanto, não seria exagero apontar o sistema como potencializador da reificação. Mesmo antes do capitalismo formal, os sistemas anteriores se baseavam na mercantilização e no ganho pessoal. Ora, para que alguém ganhe é preciso que outrem perca. Assim sendo, a lógica embrionária do capital já estava ali, sendo este apenas a intensificação evolutiva do que já ocorria em tempos anteriores.

O espetáculo está na alta competitividade onde somente a vitória interessa. O papel que se espera é uma padronização que esteja alinhada com a etiquete comportamental desejada pelo status quo, mantendo assim a dominação daqueles que estão no poder, consolidando os seus privilégios. Ou todos acreditam na sinceridade plena nas maiorias das entrevistas de empregos? O produzido nem sempre é levado em conta, pois é passado. Há muita expectativa na adesão futura às políticas da empresa e qualquer desvio (desvio no sentido amplo do entendimento que cada norma sugere) é pior do que uma qualificação sincera. O mesmo se aplica, como o próprio Honneth exemplifica em Reificação, sobre os sites de relacionamentos e procura por parceiro. Os rótulos estão por todas as partes.

O intuito desta reflexão não é esgotar o debate sobre a reificação, mas alertar para o perigo da racionalização cultuada, por vezes, acima do valor da própria vida. A transformação de atributos qualitativos em coisas é um risco social. O esquecimento do reconhecimento pode se dar para com os outros indivíduos, para com os objetos ou mesmo com o próprio sujeito. Dada as devidas proporções, a união de fragmentos dos pensamentos de Weber, Lukács e Honneth se faz viável como um grito de cuidado para a contemporaneidade globalizada. Não podemos nos esquecer das atrocidades e de quem somos. Reconhecer não é concordar, mas respeitar. Cabe ainda uma reflexão final de Trótski: "se os fins justificam os meios, o que justifica os fins?". 

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Reflexão sobre o aniversário

Os cabelos brancos aparecem. Dor nas costas, dor de cabeça. Tento ser o melhor possível, mas nem sempre parece ser suficiente. Um novo corte, um novo machucado. As cicatrizes ficam. Enfim deixo o cabelo crescer novamente. Libertação que facilita a fuga, pois é mais fácil se esconder. A rotina se acumula e então me belisco para ver se ainda sei sentir. A realidade distorcida parece um labirinto sem fim. Procuro manter a calma e focar nos objetivos, metas, indicadores, fluxos. Mas os sonhos falam mais alto...

A gravidade vence qualquer tentativa de voar sozinho. Por que continuar? Os animais são os melhores remédios, os remédios se tornam companheiros. Uma picada nova de agulha para a nova idade. Há sempre a ameaça de uma nova epidemia, uma inova invenção, uma nova vacina. Qual a cura? Como atingir o nirvana? Aos poucos ficando para trás. Uma foto antiga, um lugar na memória. Uma família perfeita em algum lugar da história. Sei que não é passado, pois me lembro todo santo dia. Uma década parece muito, mas eu ainda sinto falta. Cada vez mais a certeza de que a saudade será eterna. Impossível não sentir o buraco que a ausência faz. A cada pessoa que amamos quando nos deixa, um vazio novo que jamais será ocupado. E assim o velho vai sendo preenchido.


Eu prometi me manter de pé e com a cabeça erguida. Mas o que me tornei? Todos desejam ser anjos na Terra, mas nos faltam asas. Vícios, pecados, sujeiras. As virtudes são tantas, mas se tornam apagadas. O peso nos ombros sempre fala mais alto. Astigmatismo, miopia, minha vista cada vez mais frágil e cansada. Evito andar pelo sol e aos poucos me acostumei às sombras. Gosto do escuro de casa, gosto da solidão, gosto de dias nublados e da tempestade que chega. Procuro ser forte diante de quem me ama. Procuro ser forte por quem eu amo. E assim cada semana se passa, cada batalha é vencida. Em algum lugar aonde não estou, o lugar mais alto do altar, o primeiro lugar do pódio...espaços tão distantes de serem alcançados. 

Mesmo assim a gente insisti. Luta, procura pelo melhor. Uma coroa de espinhos na liquidez da superficialidade diária. A mentira contada desde criança, a meritocracia abafada lentamente. Letal. A idade pode chegar para todos, mas os bons vão antes. O tempo passa como a areia na ampulheta, as lembranças escapam pelos dedos, mas ainda estou aqui. Não sei até que ponto o declínio é louvável já que até a morte pode ser considerada uma dádiva. Eu realmente posso ser e fazer o que quiser? Há um determinismo nítido, mesmo não sendo positivista.

O maior presente não pude dar. Mas ainda dá tempo. Dá tempo? Ainda dá tempo! Um sorriso tipo analgésico da minha companheira a cada dia de retorno exaustivo do trabalho para o lar. Um carinho sincero dos gatos, uma união entre amigos, um refúgio salvador nos braços da família. O que mais posso querer? Só temo os dias em que perderei aos poucos um a um. Tenho medo de me perder aos poucos. O que é o temor senão o desconhecido? Afinal, todos que conheço vão embora no final. Esse filme cíclico da vida a gente sabe como começa, mas não sabe como, nem quando, se encerra. Termina.

Busca eterna pela felicidade. O que é ser feliz senão os poucos, rápidos e memoráveis momentos de um misto de sinceridade e ingenuidade? O prazer é passageiro, mas o amor fica. As pulsões falam alto, é preciso abrir mão de você mesmo, dos próprios desejos, para não se quebrar em partes. Nem sempre é possível reparar. Quantas velas no bolo? Nós continuamos aqui. Um trono de ostentações superficiais explicitados em fotos pelas redes sociais que escondem as lágrimas da noite. A depressão disfarçada de memes, emojis e figuras. Todos em busca da vida perfeita, se esquecendo que não existe perfeição humana.

O tempo tece sua teia como um vestido invisível, mas a contagem regressiva se inicia logo no nascimento. O prazo de validade corre também pelas veias. Lá está o berço! Um vislumbre rápido do passado e do futuro. Qual será o meu presente? Acreditando nas pessoas mesmo em tempos difíceis de ódio e medo. Portas trancadas, opressão. As luzes vão se apagando. O que fazer quando as cortinas se fecham? Gostaria de ser bom, de ser útil, gostaria de mudar o mundo. Mas o que eu fiz três décadas depois? As pernas doem, assim como quando eu era criança. A caminhada não termina, a chegada nunca chega. 

Os ponteiros por vezes aceleram, por vezes param. Ouço o badalar do sino da igreja, sinto a correria das ruas, a pressão do relógio. Nós continuamos aqui ainda. Uma novidade para uma velha pessoa, uma árvore que cresce, uma criança que nasce, uma flor que brota. A única certeza da vida é que o ciclo deve continuar, o show não pode parar. Rugas, rusgas, rasgos, ossos, sangue. Tudo tem o seu retorno. Eu acredito em algo maior, em uma força superior capaz de explicar o que vai muito além de mim. Existem alguém esperando por você? Existe alguém esperando por mim. Rezando todos os dias, assim como os meus pais ensinaram, apenas para pedir e agradecer. Um ínfimo grão de areia, estrelas cadentes.

Estrela cadente, o que é e quatro dicas para conseguir vê-la

O tempo permite notarmos nossas limitações, evitarmos ilusões. Falta empatia, uma deficiência comum atual. É fácil falar, difícil é fazer melhor. Olho para as estrelas e passo horas assim, só olhando para o céu. Cidades diferentes, outra estação. Não há uma receita para a felicidade, existem diferentes formas. As coisas mudam e a felicidade se reconfigura. Gosto do silêncio da madrugada, gosto do cheiro da noite, gosta das nuvens que passam, gosto do frio e da chuva. Acho que ainda é realmente cedo para partir. Acho que estou aprendendo a ser feliz, mesmo apesar dos pesares.

Quanto vale um sorriso? Quando vale a sua paz? O que é ter qualidade de vida? As perguntas se tornam mais importantes do que as respostas prontas. É subjetivo, é relativo, é o tempo dançando com o espaço. Os degraus vão sendo superados, assim como os obstáculos no meio do caminho. Um leão por vez até a escada para o paraíso. Se eu pudesse começar de novo eu começaria, se eu pudesse melhorar...encontraria um jeito. Velas no bolo, velas no velório. Parafina no corpo, a chama que diminui cada vez mais. Um aniversário a mais ou um ano a menos, o que isso significa?

Os humilhados serão exaltados. Nossa hora vai chegar, mas por que só uma hora? Não pode ser um dia inteiro? Mal posso esperar chegar o meu dia. Mas por que só um dia? Não podem ser vários? De mãos dadas é bem melhor do que mãos vazias. Uma carta amiga, uma palavra de despedida. E se não der tempo? Diga que ama agora, diga que me ama para sempre. Tudo bem quando passa, quando se sente isolado no mundo, quando a angústia dá um nó na garganta. Quando passará? Tudo bem...quando passa. Os anos podem sufocar, mas também podem ser libertadores. A sabedoria não é o que você decora, mas o que aprende. O que eu sei? O que você realmente sabe? 

Padrões dizem o que fazer e como agir. Etiquetas, postura, modelo a ser seguido, código de moral, políticas de empresas, políticas públicas. Mas quem é você? Os outros dizem o que fazer e como agir. Mas quem é você? Desvio de conduta. Uma nova chama, um ser vivo. Uma nova chance, outras oportunidades. Leis, regras, advertências, demissões, suspensões, dívidas, controle, massificação. Quem é você? Quem são seus verdadeiros amigos? Deve haver um lugar melhor, deve haver um lugar bom para todos, talvez longe daqui. Tem que haver um paraíso bem longe daqui. Tem que fazer sentido para que nada tenha sido em vão. Não foi em vão.

No fundo continuo sendo o mesmo cara. Camisa preta larga, jeans, óculos, cabelo comprido, bota no pé. O som continua rolando no volume máximo, é o que dá energia. A mesma satisfação de sentir o vento na face, a mesma alimentação não saudável. A neblina que abraça e arrepia a pele. É o levantar em cada queda, é o superar a cada dor. É o fazer a diferença para alguém, ser admirado de forma verdadeira e ética, é ser amado (não idolatrado). Tantas pessoas especiais que se foram. Tantas pessoas especiais que ainda estão aqui. É preciso aproveitar, apreciar cada momento juntos antes que seja tarde. É preciso viver como se não houvesse amanhã.


Um aniversário nunca será só um aniversário. Ainda dá tempo de ajudar e ser ajudado. Ainda dá tempo de ajustar, consertar o que estiver quebrado. Ainda dá tempo para lutar, de fazer a diferença, tempo de gritar, reivindicar, se revoltar, tempo de agir. Sinto falta do meu pai me chamando de revolucionário, mas talvez ele tivesse razão o tempo todo e só agora eu compreendi. Hoje eu entendo. Há tempo para falar e tempo para ouvir. Há tempo de falhar e tempo para acertar. Hoje eu entendo, sei que nada sei, sei que a pergunta certa vale mais do que qualquer suposta verdade absoluta. Quero me expressar, quero ser ouvido, quero crescer e ser desenvolvido. Um bolo e uma vela: é hora de celebrar. Um beijo e um abraço, o que mais é possível desejar?

Um aniversário nunca será só um aniversário. Fevereiro nunca será apenas mais um mês entre tantos. Não sei se isso é bom ou ruim. Quantos carnavais? Quantos verões? Eu ainda prefiro o inverno. Aniversário de nascimento, aniversário de casamento, aniversário de morte. Todos têm sua importância, não precisa comparar, não precisa ser melhor do que ninguém em uma disputa cega por individualismo e imediatismo. Um último sopro, um último sorriso. Uma vez mais, uma última chance, última dança, últimas palavras. O leite da vida, o leito da morte. Ninguém quer ser esquecido. Tantas pessoas especiais que se foram. Tantas pessoas especiais por aí. Também quero ser especial, também quero ser lembrado por coisas boas. Um aniversário nunca será só um aniversário. Gostaria apenas de agradecer a todos que fizeram e ainda fazem parte desse longo caminho da vida.