segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Reflexão sobre a dialética

É consenso para todos os seres racionais que o diálogo é a melhor alternativa para a solução de problemas. Mesmo em tempos em que a violência e as armas estão em voga, uma boa conversa ainda é uma opção para o dia-a-dia. Não se trata de uma novidade: desde os tempos da Grécia Antiga é possível observar a relevância da dialética para um caminho pautado no esclarecimento construtivo.

Há cerca de quatro séculos antes do nascimento de Cristo, Sócrates já andava pelas ruas atenienses proliferando a afirmação de que tudo que sabia era que nada sabia e a partir deste ponto de abstração e modéstia confrontava os ditos intelectuais gregos da época com questionamentos sobre suas certezas que, geralmente, no final das contas, não se travam de verdades tão convictas assim. Com uma certa dose de ironia diante dos sofistas, o filósofo utilizava o método dialético para a reflexão como um verdadeiro parto que dava luz à novas ideais.


Mais importante do que respostas é saber fazer as perguntas certas. A proporção de tal relevância pautada na dúvida e no questionamento é sentida até os dias atuais no âmbito acadêmico. Muito além do que simplesmente ter uma suposta razão efêmera, a dialética trata-se de um grande diálogo construtivo em busca de novos caminhos. O objetivo é aperfeiçoar o entendimento sobre determinado assunto de modo profundo, ultrapassando as barreiras da superficialidade.

No século XVIII, mais de mil anos depois da dialética socrática e após várias interpretações de seus respectivos discípulos (Platão e Aristóteles) e demais seguidores, o método ganhou novos contornos por meio da visão hegeliana. Hegel apontava para a característica de movimento em que cada ideia parte de si para uma segunda, gerando assim, consequentemente, uma terceira formulação, fruto da construção das duas primeiras formulações. 

Tal dinâmica pode ser representara pelo seguinte fluxo: tese - antítese - síntese. O método dialético baseia-se, segundo Hegel, na afirmação contraposta pela negação o que gera a negação da negação. A crítica inerente ao processo dialético rompe com o dualismo ao formar tríades. O resultado de cada método dialético origina uma terceira via, um novo paradigma pautado na relação mútua entre objeto e sujeito, sem priorizar um dos lados. Superação da lógica.


No século seguinte (XIX), Engels e Marx consolidaram o termo ao influenciar gerações e a ciência em seu âmbito mais formal por meio de dissertações, teses e teorias. Marx afirmava que a dialética é, simultaneamente, pensamento e realidade. Desse modo, o marxismo ressalta o aspecto da crítica, da historicidade e do materialismo no método dialético revisando Hegel. Este método consagrou-se nos trabalhos acadêmicos na contemporaneidade, sobretudo nas áreas de Humanas. 

Partindo da racionalidade humana, o diálogo de pensamentos é utilizado mesmo na formulação de projetos físicos. Ora, se o processo dialético é pautado no movimento do saber do indivíduo, cada novo paradigma é resultado desse embate de ideias, alterando o que antes era certo e sólido, muitas vezes pautado em avanços tecnológicos. A comunicação é própria da dinâmica humana, não adianta fugir das próprias origens e dos debates.

Isso não quer dizer que o método hipotético-dedutivo (cujo foco é dado ao objeto de modo analítico) e o método fenomenológico-hermenêutico (cujo foco está na percepção do sujeito) estão descartados. Inclusive, é possível conciliar os métodos em diferentes fases de uma pesquisa (apesar de tal prática não ser muito recomendada por professores e orientadores na elaboração de um projeto científico). O grande diferencial da dialética é que o diálogo está em constante deslocamento, migrante, talvez até nômade, agregando conhecimentos, questionando, propondo novos caminhos sem nunca ficar estático. O próprio processo de criação de paradigmas é feito de ruptura e movimento.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Reflexão sobre a banalização dos direitos humanos

O conceito de direitos humanos aparenta sofrer uma deterioração com o tempo em diferentes lugares do planeta. No âmbito global a própria ONU (Organização das Nações Unidas) perdeu sua relevância internacional como mediadora de conflitos e crises em defesa da proteção dos indivíduos. O que era dado como consenso mundial durante a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 após a Segunda Guerra Mundial (cujo saldo foi mais de 60 milhões de mortos e tantas outras violações à condição humana tais como fome, tortura, trabalho forçado, estupros, agressões físicas e psicológicas, etc.) parece ter se perdido. Será meramente uma questão psicológica de memória curta? A questão aqui é tentar entender o motivo de tal descrédito.

Uma das possíveis causas que compõem a conjuntura da perda de parte da legitimidade dos direitos humanos é justamente o seu alto teor teórico. Tendo como ponto de partida a inspiração oriunda tanto da Declaração de Direitos de Virgínia (1776) associada à independência estadunidense, quanto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) associada à revolução francesa, o que se nota é uma contradição histórica típica do capital. Em ambos os casos, as declarações ficaram mais na esfera do direito do que no âmbito da prática, não sendo válidas de um modo abrangente. Ou seja, não se aplicavam para grande parte da população.


Nos EUA, os direitos ficaram restritos a uma parcela dos cidadãos. Assim como ocorreu no nascimento dos conceitos de cidadão e de democracia na pólis grega, boa parte da população ficou às margens dos direitos proclamados. A questão da participação e do papel das mulheres e das crianças na sociedade só seria tratada com seriedade e equidade ao longo do século XX. A escravidão continuou forte como parte fundamental da economia dos estados sulistas, fato que se estendeu até a guerra civil estadunidense e ainda hoje deixa marcas.

Na França o que se notou após a libertação popular do absolutismo monárquico foi um período de encontros e desencontros, causando instabilidade e em alguns momentos até mesmo uma desordem entre os franceses nos períodos após a queda da Bastilha, o que só foi contornado com a ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder. As ideias eram boas e inspiradoras com o lema de igualdade, liberdade e fraternidade, mas, de fato, não houve coesão social capaz de manter o equilíbrio diante da anomia.


Entretanto, uma tentativa de explicação pautada apenas na temporalidade e na espacialidade não é suficiente para entender o motivo da banalização dos direitos humanos atualmente. No Brasil, especificamente, existe uma tradição antiga, o chamado jeitinho brasileiro, que tem por costume rotular as leis em dois grandes grupos: (a) as leis que pegam: em que há fiscalização e conscientização do cidadão no cumprimento das mesmas; (b) as leis que não pegam: mera formalização textual que, por vezes, é negligenciada pelo poder público, privado e pelo indivíduo. Portanto, nem sempre o que é de direito é de fato.

É possível apontar também as desigualdades sociais no arcabouço de tamanho enraizamento de desprezo para com os direitos da própria espécie, direitos humanos que pertencem à natureza de cada um. Essa desigualdade se dá pelos privilégios que o sistema oferece para alguns poucos em detrimento de tantos outros. O raciocínio é simples: se o cidadão mediano necessita acordar cedo, pegar trânsito, trabalhar, estudar e pagar as suas contas, por qual motivo certas pessoas, mesmo sem precisarem de fato, possuem, por direito adquirido, auxílios especiais para moradia, terno, gravata, carros oficiais, motoristas particulares, ajuda de custo em viagens, vantagens de cargo, bolsas sem trabalhar ou produzir, entre outros exemplos que causam na maioria da população um estado de apatia ou de ira? 

 

A relatividade da lei e a sua diferenciação deve ser levada em conta nesta análise de causa-raiz, pois se estamos falando de direito, devemos entender suas características fundamentais e gerais para uma análise holística. A falta de credibilidade jurídica e política impactam na queda de legitimidade dos direitos humanos. Efeito de causa e consequência. Se alguns possuem foros especiais e se a mesma lei não se aplica a todos, a justiça tem a sua parcela de participação. Nem sempre o que é legal é legítimo e vice-versa.

Deve se ter em mente que o sistema-mundo político é regime por uma espécie de anarquia, pois, mesmo com blocos regionais (sobretudo de cunho econômico) e superpotências hegemônicas que atuam nas relações internacionais, não há, politicamente falando, uma direção única, um modelo que todos seguem à risca, não há um caminho que todos devem seguir. Assim sendo, no âmbito internacional, não há uma constituição geral que paute todas as pessoas de todos os países. Essa heterogeneidade pode ser considerada saudável pelo grau de independência que gera nas nações e no respeito às suas especificidades, mas também afeta na autonomia e fragmentação de organismos mundiais, tal como a ONU.

Por fim, outro fator a ser considerado é a ascensão do autoritarismo como modelo político clamado por alguns saudosistas de regimes conservadores, totalitaristas e/ou nacionalistas como ditaduras militares e fascismo. Em um cenário de estresse, cansaço e saturação popular, a alternativa extremista é atraente para, na teoria, colocar fim aos exageros de uma oligarquia sofista pervertida. A velha demagogia de palanque. A força e a coerção estatal são vistas como alternativas viáveis para o retorno da coesão social, o que no fundo se apresenta como uma ilusão tendo-se em vista as perdas dos direitos individuais, políticos e sociais. 

Hobbes já dizia, séculos atrás, sobre abrir mão de parte da liberdade individual para a construção de um Leviatã, um Estado forte e centralizador que traria paz e prosperidade para a sociedade. Quase 400 anos se passaram desde as discussões filosóficas sobre jusnaturalismo, propriedade privada e defesa do liberalismo e o que se vê na realidade é o oposto da perfeição teórica de tais autores.

A garantia da universalização dos direitos humanos é fundamental para que as pessoas sejam tratadas com dignidade e punidas conforme os seus atos, sem exacerbações. Afinal, gente deve ser tratada como gente. Não precisa concordar, basta respeitar o próximo. Quando a humanidade perder seu vínculo social e seu elo com a própria natureza será a verdadeira representação do fim.