sábado, 27 de maio de 2017

Reflexão sobre a Teoria da Dádiva

O assunto de hoje, diante de tantos escândalos que não param de explodir país afora, está ligado à antropologia política, mais precisamente sobre a Teoria da Dádiva de Marcel Mauss. Em uma sociedade capitalista em que nada é gratuito, os interesses individuais comandam pensamentos e atitudes na esfera social pública. Assim sendo, deixaremos aqui a tradição politológica de lado para refletirmos sobre a esfera humanística e societal das relações de poderes nas tomadas de decisões.

O ponto de partida é compreender o significado de dádiva: ato ou efeito de dar espontaneamente algo de valor, material ou não, a alguém; presente, oferta, brinde. Tal conceito é aplicado de forma recorrente dentro das doutrinas religiosas. Mas, deixando o caráter mágico de lado e adentrando a realidade, o cotidiano é feito de relacionamento e indicações, pondo a meritocracia quase que na idealização de um mundo perfeito ainda não existente. Na teoria de Mauss, os elementos básicos da dádiva são três: dar, receber e retribuir. Trata-se de uma teoria geral das relações humanas, seja no âmbito particular, político ou econômico.

Assim sendo, a vida é construída em meio a um jogo de interesses e trocas. A barganha está embutida no gene humano, sobretudo em uma sociedade materialista como a atual. Desse modo, há o estabelecimento de alianças, praticamente um contrato de ideias onde o dar requer o receber, posteriormente a retribuição e assim vai, tornando-se em um processo dinâmico e cíclico. Estamos falando de um mecanismo de sobrevivência em que esperamos algo em troca, mesmo que não esteja claro. Isso vale para bens materiais, como a festa que a mãe dá de aniversário para o filho buscando fortalecer as relações familiares e também a obtenção de presentes para a criança. Assim também é nos brindes dados em campanhas eleitorais em que o político espera o voto como retribuição do seu ato "caridoso", gerando assim as famosas relações de coronelismo e clientelismo.

Mas tal ideia não restringe-se apenas a bens físicos, como dito na própria descrição do conceito mencionado no início do segundo parágrafo. Pode haver também uma troca subjetiva de sentimentos. Um exemplo é o namorado que dá flores à amada esperando que a mesma mantenha os laços estabelecidos no relacionamento. Portanto, é possível concluir que dar algo a alguém é sinônimo de dar algo a si mesmo. Buscando um termo na área econômica, seria como dizer que somos sempre credores e devedores, seja em bens físicos ou em ações. Desse modo, nosso sistema é constituído de trocas e de hierarquias, podendo traçar facilmente um paralelo-comparativo com a política real.

Uma figura boa para termos como ilustração é o Eduardo Cunha que possuía uma teia de favores dentro do meio político que o tornaram presidente da Câmara, barganhando sua salvação com aliados e oposição. Não conseguindo o que queria mediante ao avanço da Lava Jato em seu encalço, abriu o processo de impeachment contra a ex-presidente da república e mesmo preso é pago para manter o silêncio para não prejudicar o atual governo que pertence ao seu partido. Isso não foi suficiente para que afetasse o ilustríssimo corrupto Michel Temer e todos aqueles que estão em sua volta, desde ministros até assessores políticos. Neste caso, podemos notar que a Teoria da Dádiva encontra-se em sua plenitude de um modo tão complexo que às vezes é difícil de explicar claramente os detalhes desse submundo. Em um português popular seria o mesmo que dizer que "todos estão com o rabo preso", um dependendo do outro.

O problema é sistêmico e não se restringe aos partidos políticos. Basta ver os envolvidos. Não é de se espantar que as denúncias tenham chegado até o ponto que está. Chega a ser cômico ver os depoimentos nas redes sociais daqueles que durante as manifestações do ano passado enchiam a boca para dizer "eu votei no Aécio". Parabéns! A política não é uma partida de futebol, mas está contaminada de fanatismo e isso gera o extremismo. É preciso ter racionalidade, porque desde a época do Mensalão era claro que todos os que rondavam o poder estavam envolvidos em atos de corrupção e dinheiro ilícito. Estranho como só agora alguns se deram conta do que estava escancarado, mas fora encoberto pelas amizades de Brasília e pelo silêncio cúmplice das mídias. Em um momento tão conturbado como agora precisamos de serenidade e seguir a constitucionalidade na qual o Estado brasileiro está organizado. Qualquer ato que ultrapasse esse limite de ordem pode acarretar em um distúrbio de violência ainda maior do que o caos vivido.

O dar, receber e retribuir está tão enraizado na cultura política brasileira que vem desde os primórdios do país. O coronelismo continua nos municípios, sobretudo no interior e nas periferias. Os favores e interesses estão, mais do que nunca, no comando em um lugar cujo Estado nasceu antes da consciência social democrática. Assim se faz na política similar ao modo de indicação que é feito no mundo corporativo. Eis a nossa dádiva de cada dia. A ferramenta do voto passou de representação de uma sociedade melhor para a barganha comercial costumeira do capitalismo. Desse modo, somos humanos vendedores e vendidos e me incluo também nisso; afinal, é preciso sobreviver ao mundo em nossa volta. Refletir é preciso para mudar não o mundo, mas nós mesmos e, se possível, a nossa volta. Não é possível haver desenvolvimento sem conhecimento e informação. Refiro-me ao ensino, pois educação se faz em casa e até nisso vejo maus exemplos espalhados pelo Brasil. 

A desculpa é sempre a economia e a culpa é sempre da população, mas com tantas malas de dinheiro indo e vindo é preciso se perguntar se a propaganda anunciada é verdadeira. A opinião pública não tem filtrado as informações que recebe e por isso nos vemos nessa divisão estúpida de cores onde nem os partidos seguem verdadeiramente uma ideologia. O problema não restringe-se à instituição partidária, pois os partidos são feitos de pessoas e aí está a causa-raiz. O fato é: para o Brasil ficar ruim precisamos melhorar muito ainda (e quando digo precisamos refiro-me às instituições políticas e cidadãos).

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